O termo Crestomatia
do grego , khrestos , “ útil “ e mathein
, “ saber “ , aplica – se a uma coletânea de textos literários destinados ao ensino escorreito da língua pátria . Em 1850 surgiu uma Crestomatia Arcaica em Portugal , de autoria de Inocêncio Francisco da Silva ,
um calhamaço de 756 páginas que logo
tomaria ares de um clássico .
O insigne professor gaúcho Radagasio Taborda lançou em 1931 uma Crestomatia que serviu nas três décadas
seguintes aos alunos do ensino fundamental em escolas públicas e privadas da
nação brasileira . Hoje presta- se como
uma relíquia para bibliófilos e
especialmente para aqueles saudosistas que sorveram suas lições , às vezes , truncadas por palavras
desconhecidas pelos petizes em seus primeiros contatos com clássicos da
literatura brasileira e portuguesa .
Para um bom início ,
no lugar de prefácio ou prólogo na apresentação da distinta obra , estampava-se o estrambótico “ Antilóquio “ , servindo de batismo para os alunos . A lição inicial “ O campônio e o
passaredo “ assinalava como autor , Dom Antônio de Almeida Lustosa ( 1886 –
1974 ) , Arcebispo da Arquidiocese de Fortaleza ( 1941 – 1963 ) . Outras páginas da Crestomatia davam abrigo
ao insigne religioso e intelectual . No brasão
de armas de Dom Antônio consta : “
Guarda- me como a pupila dos olhos , esconde –me à sombra de tuas asas , longe
dos ímpios que me oprimem , dos inimigos mortais que me cercam “ . Tal gentil – homem encontra- se em seu repouso
eterno na Catedral Metropolitana de Fortaleza .
Numa das passagens da Crestomatia , Rui Barbosa ( 1849 – 1923) , o grande jurista , jornalista , político , orador e diplomata baiano , discorre , de forma elegante , sobre “ O estouro da boiada “ :
Numa das passagens da Crestomatia , Rui Barbosa ( 1849 – 1923) , o grande jurista , jornalista , político , orador e diplomata baiano , discorre , de forma elegante , sobre “ O estouro da boiada “ :
“ Já vistes o estouro
da boiada ? . Vai o gado sua estrada mansamente , rota segura e limpa , chã e
larga , batida e tranquila , ao tom monótono dos eias ! dos vaqueiros . Caem as
patas no chão em bulha compassada . Na vaga doçura dos olhos dilatados ,
transluz a inconsciente resignação das alimárias , oscilantes as cabeças ,
pendentes à margem dos perigalhos , as aspas no ar em silva rasteira sobre o
dorso da manada . Dir-se-ia a paciência em marcha abstrata de si mesma, ao
tilintar dos chocalhos , em pachorrenta andadura , espertada automaticamente
pela vara dos boiadeiros .Eis senão quando ,não se atina porque , a um acidente
mínimo , um bicho inofensivo que passa a fugir , o grito de um pássaro na
capoeira , estalido de uma rama no arvoredo , se sobressalta uma das reses
, abala , desfecha a correr , e após ela
se arremessa em doida arrancada , atropeladamente , o gado todo . Nada mais o
reprime . Nem brados , nem aguilhadas o detêm , nem tropeços , voltas ou
barrancos por davante . E lá vai , incessantemente , o pânico em desfilada ,
como se os demônios o tangessem , léguas e léguas , até que , exausto o alento
,esmorece e cessa afinal a carreira , como começou , pela cessação de seu
impulso “ .
A descrição deste fenômeno da natureza que ocorre com animais , de origem obscura , tem sido
assunto para a pena de vários escritores como Euclides da Cunha e João Ubaldo Ribeiro e logo
, por analogia transpôs –se para a saga do bicho- homem . Os caminhantes
tranquilos desenhando as veredas de uma vida , podem ,
súbito , por conta de uma gota d’agua
saírem em disparada , derrubando obstáculos , agindo de forma grotesca e
inconsciente , abrindo caminhos para implantar revoluções .O Brasil atualmente
vive um grave momento onde Instituições da República como o Senado e a Câmara
Federal perderam a sua credibilidade perante a sociedade civil em meio a graves
indícios de desenfreada corrupção . Assim se evidencia de maneira clara um
gatilho ou a gota d’agua que podem dar azo ao famigerado e imprevisível estouro
da boiada . A se creditar que Deus seja brasileiro chegou
a hora Dele fazer as pazes com o Seu
sofrido povo , caso contrário , uma nova noite brumosa irá se instalar por essas bandas , dando
sequência ao iniciante estouro da boiada . Como sempre , detecta – se o princípio do evento rumoroso
( a famigerada Lista Parlamentar de Janot ) , contudo , o epílogo do estouro da
boiada faz- se imprevisível mesmo ao
olhar mais apurado de experientes futurólogos . Tomara que o braço da justiça
alcance a tempo todos os tartufos dos podres poderes da nação agonizante .
A natureza chora e ri lá fora neste domingo de bonança com
Fortaleza banhada em tom cinza. Para bater
o centro seguem dois aperitivos maneiros da safra do compositor/ cantor
/ filósofo / místico Zé Ramalho para amenizar este pesado clima político reinante :
“ Vocês que fazem
parte dessa massa / que passa nos projetos do futuro / é duro tanto ter que
caminhar / e dar muito mais do que receber / e ter que demonstrar sua coragem /
à margem do que possa parecer / e ver que toda essa engrenagem / já sente a
ferrugem lhe comer / ê , ô , ô , vida de gado / povo marcado / ê , povo feliz !
/ lá fora faz um tempo confortável / a vigilância cuida do normal / os
automóveis ouvem a noticia / os homens a publicam no jornal / e correm através
da madrugada / a única velhice que chegou / demoram- se na beira da estrada / e
passam a contar o que sobrou / o povo
foge da ignorância / apesar de viver tão perto dela / e sonham com melhores tempos
idos / contemplam esta vida numa tela / esperam nova possibilidade / de verem
esse mundo se acabar / a arca de Noé , o dirigível / não voam , nem se pode
flutuar / “ .
“ Um país que crianças elimina / que não ouve o clamor dos
esquecidos / onde nunca os humildes são ouvidos / e uma elite sem deus é que
domina / que permite um estupro em cada esquina / e a certeza da dúvida infeliz
/ onde quem tem razão baixa a cerviz / e massacram – se o negro e a mulher /
pode ser o país de quem quiser / mas não é com certeza o meu país / um país
onde as leis são descartáveis / por ausência de códigos corretos / com quarenta
milhões de analfabetos / e maior multidão de miseráveis / um país onde homens
confiáveis / não tem voz, não tem vez , nem diretriz / mas corruptos tem voz e
vez e bis / e o respaldo de estímulo incomum / pode ser o país de qualquer um /
mas não é com certeza o meu país / um país que perdeu a identidade / sepultou o
idioma português / aprendeu a falar pornofonês / aderindo à global vulgaridade
/ um país que não tem capacidade /de saber o que pensa e o que diz /que não
pode esconder a cicatriz / de um povo de bem que vive mal / pode ser o país do
carnaval / mas não é com certeza o meu país /um país que seus índios discrimina
/e as ciências e as artes não respeita / um país que ainda morre de maleita /
por atraso geral da medicina / um país onde escola não ensina / e hospital não
dispõe de raio X / onde as gentes do morro é feliz / se tem água de chuva e luz
do sol / pode ser o país do futebol / mas não é com certeza o meu país / um
país que é doente e não se cura / quer ficar sempre no terceiro mundo / que do
poço fatal chegou ao fundo /sem saber emergir da noite escura / um país que
engoliu a compostura / atendendo a políticos sutis / que dividem o país em mil
brasis / pra melhor assaltar de ponta a ponta / pode ser o país do faz- de-
conta / mas não é com certeza o meu país / tô vendo tudo , tô vendo tudo / mas
, fico calado , faz- de - conta que sou mudo “ .
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