Ser Doutor - Lima Barreto
" Não chovia mais . As nuvens tinham corrido de um lado do horizonte, deixando ver uma nesga de céu azul . Um pouco de sol banhava aquelas colinas tristes e fatigadas, por entre as quais caminhávamos. A minha situação no Rio estava garantida. Obteria um emprego . Um dia pelos outros iria às aulas, e todo o fim do ano , durante seis , faria os exames , ao fim dos quais seria doutor !
Ah ! Doutor ! Doutor ! ... Era mágico o título , tinha poderes e alcances múltiplos , vários, polimórficos... Era um pálio, era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos , os maus olhares , os exorcismos se quebravam .
Oh ! Ser formado , de anel no dedo , sobrecasaca e cartola , inflado e grosso , como um sapo antes ferir a mortadela à beira do brejo ; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas , recebendo cumprimentos : Doutor como passou ? Como está, doutor?
Era sobre - humano !
Era uma outra casta , para a qual eu entraria , e desde que penetrante nela , seria de osso , sangue e carne diferente dos outros - tudo isso de uma qualidade transcendente, fora das leis gerais do Universo e acima das fatalidades da vida comum ".
Excertos de " Recordações do Escrivão Isaías Caminha " , 1909 , da lavra do gigante Lima Barreto ( 1881 - 1922 ) , jornalista e escritor brasileiro , identificado com o pré- modernismo . Publicou romances , sátiras, contos , crônicas e uma vasta obra em periódicos, no inicio do século XX.
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