Tempo de Sonhar
Porque é tempo de sonhar, porque sempre é tempo de poesia , porque convém acreditar na eterna infância do homem :
"Num meio - dia de fim de primavera/tive um sonho como uma fotografia /vi Jesus Cristo descer à terra/veio pela encosta de um monte/tornado outra vez menino/a correr e a rolar-se pela erva/e a arrancar flores para as deitar fora/e a rir de modo a ouvir-se de longe/tinha fugido do céu/ era nosso demais pra fingir/de segunda pessoa da Trindade/no céu era tudo falso, tudo em desacordo/com flores e árvores e pedras/no céu tinha que estar sempre sério/e de vez em quando/de se tornar outra vez homem/
E subir para a cruz , e estar sempre a morrer/hoje vive na minha aldeia comigo/é uma criança bonita de riso natural/limpa o nariz ao braço direito/chapinha nas poças de água/colhe as flores e gosta delas e esquece-as/atira pedras aos burros/rouba fruta dos pomares/e foge a chorar e gritar dos cães/ e porque sabe que elas não gostam/ e que toda gente acha graça/corre atrás das raparigas/ que vão em ranchos pelas estradas/com bilhas à cabeça/e levanta-lhes as saias/
A mim ensinou-me tudo/ensinou-me a olhar para as pessoas/aponta-me todas as coisas que há nas flores/ele mora comigo na minha casa no meio do outeiro/Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava/Ele é o humano que é natural/Ele é o divino que sorri e que brinca/ e por isso é que eu sei com toda certeza/que ele é o Menino Jesus verdadeiro/e a criança tão humana que é divina/é está minha cotidiana vida de poeta/ e é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre/e que o meu mínimo olhar/ me enche de sensação/ e o mais pequeno som, seja do que for/ parece falar comigo/ a criança nova que habita onde vivo / dá- me uma mão a mim/ e outra a tudo o que existe/e assim vamos os três pelo caminho que houver/saltando e cantando e rindo/e gozando o nosso segredo comum/ que é o de saber por toda parte/ que não há mistério no mundo/e que tudo vale a pena/
A Criança Eterna acompanha- me sempre/ a direção do meu olhar é o seu dedo apontando/ o meu ouvido atento alegremente a todos os sons/são as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas/
Damo-nos tão bem um com o outro/ na companhia de tudo/que nunca pensamos um no outro/mas vivemos juntos e dois/com um acordo íntimo/com a mão direita e a esquerda/ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas/ no degrau da porta de casa/graves como convém a um deus e um poeta/ é como se cada pedra/fosse todo um universo/ e fosse por isso um um grande perigo/ deixá-la cair no chão/
Depois eu conto- lhe histórias de cousas só de homens/ e ele sorri, porque tudo é incrível/ ri dos reis e dos que não são reis/ e tem pena de ouvir falar das guerras/ e dos comércios, e dos navios/ que ficam fundo no ar dos altos mares/porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade/ que uma flor tem ao florescer/ e que anda com a luz do sol/ a variar os montes e os vales/ e a fazer doer aos olhos os muros caiados/ depois ele adormece e eu deito-o/ levo-o ao colo para dentro de casa/ e deito-o, despindo-o lentamente/ e como seguindo um ritual muito limpo/ e todo materno até ele ficar nu/ Ele dorme dentro da minha alma/ e às vezes acorda de noite/ e brinca com os meus sonhos/ vira uns de pernas para o ar/ põe uns em cima dos outros/ e bate palmas sozinho/ sorrindo para o meu sono/
Quando eu morrer , filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno/ pega- me tu ao colo/ e leva- me pata dentro da tua casa/ despe o meu ser cansado e humano/ e deita - me na tua cama/ e conta- me histórias, caso eu acorde/ para eu tornar a adormecer/ e dá- me sonhos teus para eu brincar/ até que nasça qualquer dia/ que tu sabes qual é! "
Quando eu morrer , filhinho, seja eu a criança, o mais pequeno/ pega- me tu ao colo/ e leva- me pata dentro da tua casa/ despe o meu ser cansado e humano/ e deita - me na tua cama/ e conta- me histórias, caso eu acorde/ para eu tornar a adormecer/ e dá- me sonhos teus para eu brincar/ até que nasça qualquer dia/ que tu sabes qual é! "
Alberto Caeiro ( Fernando Pessoa) : 1888 - 1935.
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