Meu Amor Ficou no Hotel - Caio Cid
Para Terezinha Miranda Cordeiro
" Ninguém pense que viajei sozinho de Fortaleza para o Rio , que vim de lá solteiro, livre sem responsabilidade . Trouxe comigo uma delicada companheira, uma criatura que não se conformou em me ver sair abandonado ,como um sujeito sem amor e sem merecimento .
Durante a longa travessia aérea, minha doce amiga não se manifestou , não exigiu nada , não revelou o menor aborrecimento . Quietinha em seu lugar , ligada ao meu destino de sua espontânea vontade , mantendo - se firme no avião, corajosa e bem disposta . Nunca me disse uma só palavra de arrependimento, nunca me deu o menor sinal de receio .
Quando o " Capitanea " posou serenamente na Ponta do Calabouço " , desci meio tonto , apanhei um táxi, levando comigo a destemida e delicada jovem , cuja atitude ainda era a mesma que mantivera em toda a viagem .
Já no quarto que me fora reservado no Hotel Mem de Sá - uma verdadeira armadilha à bolsa dos adventícios - abri a malota, banhei o rosto , fiz que estava a vontade e dirigi a palavra áquela que não trepidara em acompanhar - me :
- Bem , minha filha , agora fique no hotel para repousar um pouco , enquanto vou fazer o meu primeiro contato com a cidade misteriosa . Não se impressione . Tome conta da cama e durma um sono , se puder . Voltarei dentro de uma hora e meia .
Na Galeria Cruzeiro , ainda com o ronco dos motores na cabeça , fui abraçando os primeiros conterrâneos. Cada um se mostrava mais espantado com a minha presença , como se eu tivesse sido condenado a vinte anos de Fernando de Noronha e de repente surgisse no Rio de Janeiro .
Mas a maior sensação que produzi no seio da turma foi quando declarei que havia trazido uma cearense comigo , uma belezinha do norte , uma franzina e ingênua filha da terra de Iracema .Todos ficaram logo muito esquentados e dois ou três dos malandros pediam com insistência , que eu os levasse imediatamente ao hotel , pois faziam muito empenho em conhecer de perto a minha pequena . Embora contrariados, tiveram que ceder às minhas razões e eu fui embora depressa para o hotel .
Encontrei - a passeando sobre a colcha da cama , sempre calma , sempre dócil, como se fosse minha escrava , sem direitos a reclamar .
Acariciei - a com a ponta do dedo .
Arranjei uma caixinha de sabonete , furei o papelão em várias partes, para garantir - lhe a entrada de ar , e pus lá dentro , um torrão de açúcar, ao lado de um pedacinho de laranja .
Infelizmente , no quarto dia tive de lamentar a morte da minha querida companheira . Ao abrir a caixa para renovar o alimento, meus olhos caíram sobre o pequeno cadáver. Cavei um branquinho na parede e ali sepultou a inditosa formiga - de - roça , a imprudente cearense que viera clandestinamente no fundo de minha malota de viagem .
Nunca mais a esquecerei . Tenho impressão que fiquei viúvo ! " .
Crônica poética da autoria de Caio Cid ( 1904 - 1972 ) , nascido na Serra de Aratanha , município de Pacatuba , Ceará . Filho de Raimundo Pereira Cavalcante , e de Agripina Soares Cavalcante . Cronista , contista , poeta e , genuinamente , boêmio . Vivia cercado de intelectuais, artistas e notívagos da cidade , como Demócrito Rocha , Otacilio de Azevedo , Otávio Lobo e Leonardo Mota .
Conheci - o em minha infância , na rua Rodrigues Júnior , na boca da noite , com um jornal debaixo do braço , e em busca de novas histórias da vida .
Publicou : Aleuda ( 1934 ) ; Aguapés ( 1935 ) ;
Gitirana ( 1938 ) ; Canapum ( 1950 ) .
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