ALUCINAÇÃO/BAHIUNO/BELCHIOR
No ano
bissexto de 1976 acontece o lançamento do álbum “Alucinação” da autoria do
cearense Antônio Carlos Belchior (1946-2017), que há pouco surgira no mundo da
Música Popular Brasileira com a canção vencedora do IV Festival Universitário:
“Na Hora do Almoço”, no ano de 1971, defendida por Jorginho Telles e Jorge Nery..
“No centro
da sala, diante da mesa/no fundo do prato, comida e tristeza/a gente se olha,
se toca e se cala/e se desentende no instante que fala/medo, medo, medo, medo,
medo, medo/cada um guarda mais o seu segredo/a sua mão fechada, a sua boca
aberta/o seu peito deserto, sua mão parada/lacrada e selada/e molhada de
medo/pai na cabeceira: é hora do almoço/minha mãe me chama: é hora do
almoço/minha irmã mais nova, negra cabeleira/minha avó reclama: é hora do
almoço!/ei, moço!/eu inda sou bem moço/pra tanta tristeza/deixemos de coisa,
cuidemos da vida/senão chega a morte ou coisa parecida/e nos arrasta moço, sem
ter visto a vida/ou coisa parecida, ou coisa parecida/ou coisa parecida,
aparecida/ou coisa parecida, ou coisa parecida/ou coisa parecida, aparecida”
Composição
Na Hora do Almoço, autoria de Belchior.
Lançado pelo
selo Phillips, o álbum “Alucinação” consagra a figura do compositor nordestino
de voz anasalada, onde todas as dez faixas do disco, emplacaram no gosto
popular como fecundos e duradouros sucessos. Uma característica desse
beletrista cabeça-chata, se manteria como sua marca registrada: letras longas,
vasadas num casto português, costurando temas poéticos, políticos, sociais e
filosóficos, ligados à insatisfação da juventude, à rebeldia, à desumanidade da
cidade grande e à dolorida solidão das pessoas destas capitais.
“Apenas um
rapaz latino-americano”; “Velha roupa colorida”; “Como nossos pais”; “Sujeito
de sorte”; “Como o diabo gosta”; “Alucinação”; “Não leve flores”; “A palo
seco”; “Fotografia 3X4”; “Antes do fim”, compunham o singelo disco, hoje
catalogado como um clássico da discografia nacional.
“Eu não
estou interessado/em nenhuma teoria/em nenhuma fantasia/nem em algo mais/nem em
tinta pro meu rosto/ou, oba-oba, ou melodia/para acompanhar bocejos/sonhos
matinais/eu não estou interessado/em nenhuma teoria/nem nessas coisas do
Oriente/romances astrais/a minha alucinação é suportar o dia-a-dia/e o meu
delírio/é a experiência com coisas reais/um preto, um pobre, um estudante/uma
mulher sozinha/blues jeans e motocicletas/pessoas cinzas normais/garotas dentro
da noite/revólver : cheira cachorro/os humilhados do parque/com os seus
jornais/carneiros, mesa, trabalho/meu corpo que cai do oitavo andar/e a solidão
das pessoas/dessas capitais/a violência da noite/o movimento do tráfego/um
rapaz delicado e alegre/que canta e requebra/é demais!/cravos, espinhas no
rosto/rock, hot dog/play it cool, baby/doze jovens coloridos/dois
policiais/cumprindo o seu duro dever/e defendendo o seu amor/e nossa vida/mas
eu não estou interessado/em nenhuma teoria/em nenhuma fantasia/nem no algo
mais/longe o profeta do terror/que a laranja mecânica anuncia/amar e mudar as
coisas /me interessa mais “/
“Alucinação”
composição da autoria de Belchior.
O rapaz latino-americano
se desnuda num mar de verdades cruas, cortantes, feito faca, talhadas por um
jovem que veio do Norte e que caiu na cidade grande, em tempos ásperos, no
medonho redemoinho do Movimento Militar de 64, pondo fim a um juvenil sonho libertário
para a triste América do Sul, do sal e do sol.
A partir de
então, Belchior, quase que anualmente lança trabalhos, catapultado pela voraz
mídia, até desaguar no enigmático CD “Bahiuno” da Gravadora Movieplay no ano de
1993, onde emergem cantos, desencantos e utopias, próprios dos turbulentos Anos
60 e 70 do século passado.
“Já que o
tempo fez-te a graça de visitares o Norte/leva notícias de mim/diz àqueles da
província que já me viste a perigo/na cidade grande, enfim/conta aos amigos
doutores/que abandonei a escola para cantar em cabaré/baiões, bárbaros,
bahiunos/com a mesma dura ternura/que aprendi na estrada e com Che/ah!
Metrópole violenta que extermina os miseráveis/negros párias, teus meninos/mais
uma estação no inferno/Babilônia, Dante eterno! Há Minas?/outros destinos
?/conta àquela namorada/que vai ser sempre o meu céu/mesmo se eu virar estrela/e
aquelas botas de couro combinam com o meu cabelo/já tão grande quanto o dela/e
no que toca à família/dá-lhe um abraço apertado que a todos possa
abarcar/fora-da-lei procurado me convém/família unida contra quem me
rebelar/cai o Muro de Berlim – cai sobre ti/sobre mim, Nova Ordem
Mundial/camisa-de-força-de-vênus.../ah! Quem compraria, ao menos, o velho gozo
animal/já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte/leva notícias de
mim/o cara caiu na vida vendo seu mundo tão certo/assim tão perto do fim/dá
flores ao comandante que um dia/me dispensou do serviço militar/ah! Quem
precisa de heróis:/feras que matam na guerra e choram na volta ao
lar/gênios-do-mal tropicais/poderosos bestiais/vergonhas de Mãe Gentil/fosse eu
um Chico, um Gil, um Caetano/ e cantaria, todo ufano: ‘Os Anais da Guerra Civil”/ao
pastor da minha igreja/reza que esta ovelha negra/jamais vai ficar branquinha/-
não vendi a alma ao diabo.../o diabo viu mal negócio nisso de comprar a
minha/se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito/- onde foi que a gente
errou?/elogiando a loucura/e pondo-me entre sonhadores/diz que o show já
começou/trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes :/barbárie,
devastação/o rinoceronte é mais decente do que essa gente demente/do Ocidente
tão cristão”/ Composição Bahiuno, de
autoria de Belchior e Francisco Casaverde.
O neologismo
Bahiuno diz respeito a baiano, como eram denominados os nordestinos/nortistas
que migravam para o Sul Maravilha, em busca da sorte grande, e, Huno, tribo
nômade, bárbara, comandada pelo rei Átila, nominado “Flagelo de Deus”, que
invadiu o Império Romano no século IV. Cumpre salientar, que em sua
magnanimidade e doçura, Belchior põe-se ao largo, sendo um antípoda do
sanguinário rei Átila.
Em Bahiuno, o menestrel cearense faz chegar
aos seus amigos e familiares notícias de sua aventura/desventura na Cidade
Grande, referindo-se, também aos “doutores”, seus diletos companheiros da
Faculdade de Medicina da UFC, Turma de 1973, apartados do compositor, de
chofre, pela mão do destino, em 1971 com sua partida rumo a São Paulo. A letra
faz clara menção ao guerrilheiro argentino/cubano Ernesto Che Guevara
(1928-1967), trucidado na Bolívia; e a Dante Alighieri (1265-1321), poeta/
político florentino de quem Belchior tencionava traduzir a magna “Divina
Comédia”.
Aparecem em
“Bahiuno” as figuras de Chico(Buarque), carioca com fortes laços familiares em
Pernambuco; Gil (Gilberto) e Caetano(Veloso), estes baianos, todos ídolos da
MPB, a quem o cearense Belchior trata com a devida reverência (fosse eu um
Chico, um Gil, um Caetano...).
Caetano,
Gil, Betânia e Gal fizeram parte dos Doces Bárbaros e do Movimento
Tropicalista, que influenciaram toda uma geração da moderna MPB. Não tardou a
surgir na época, numa província do Norte, o “Pessoal do Ceará”, onde
despontaram figuras como Augusto Pontes, Cláudio Pereira, Belchior, Raimundo Fagner,
Ednardo, Rodger Rogério, Tetty, Fausto Nilo, Antônio José Brandão, Ricardo
Bezerra, Ieda Estergilda, Cirino, Sérgio Pinheiro, Delberg, Francisca
Neponuceno, Petrúcio Maia, Jorge Mello e Amelinha, dentre outros.
Do mesmo
modo que o álbum “Alucinação” de 1976, põe em evidência a monumental figura do
poeta, cantor, pintor e intelectual Antônio Carlos Belchior, Bahiuno, de 1993,
fecha com chave de ouro a rica trajetória do bardo cearense, na história de
nosso cancioneiro. Daí até 2017, ano de sua partida rumo às nuvens do divino,
pouco foi acrescentado ao rico acervo musical talhado a cinzel pelo magistral”
rapaz latino-americano, vindo do interior e sem parentes importantes”, mas que cravou
sua marca indelével na moderna Música Popular Brasileira.
Francisco
Clayrton/Francisco Eleutério.
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