quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

ALUCINAÇÃO/BAHIUNO/BELCHIOR



No ano bissexto de 1976 acontece o lançamento do álbum “Alucinação” da autoria do cearense Antônio Carlos Belchior (1946-2017), que há pouco surgira no mundo da Música Popular Brasileira com a canção vencedora do IV Festival Universitário: “Na Hora do Almoço”, no ano de 1971, defendida por Jorginho Telles e Jorge Nery..

“No centro da sala, diante da mesa/no fundo do prato, comida e tristeza/a gente se olha, se toca e se cala/e se desentende no instante que fala/medo, medo, medo, medo, medo, medo/cada um guarda mais o seu segredo/a sua mão fechada, a sua boca aberta/o seu peito deserto, sua mão parada/lacrada e selada/e molhada de medo/pai na cabeceira: é hora do almoço/minha mãe me chama: é hora do almoço/minha irmã mais nova, negra cabeleira/minha avó reclama: é hora do almoço!/ei, moço!/eu inda sou bem moço/pra tanta tristeza/deixemos de coisa, cuidemos da vida/senão chega a morte ou coisa parecida/e nos arrasta moço, sem ter visto a vida/ou coisa parecida, ou coisa parecida/ou coisa parecida, aparecida/ou coisa parecida, ou coisa parecida/ou coisa parecida, aparecida”

Composição Na Hora do Almoço, autoria de Belchior.

Lançado pelo selo Phillips, o álbum “Alucinação” consagra a figura do compositor nordestino de voz anasalada, onde todas as dez faixas do disco, emplacaram no gosto popular como fecundos e duradouros sucessos. Uma característica desse beletrista cabeça-chata, se manteria como sua marca registrada: letras longas, vasadas num casto português, costurando temas poéticos, políticos, sociais e filosóficos, ligados à insatisfação da juventude, à rebeldia, à desumanidade da cidade grande e à dolorida solidão das pessoas destas capitais.

“Apenas um rapaz latino-americano”; “Velha roupa colorida”; “Como nossos pais”; “Sujeito de sorte”; “Como o diabo gosta”; “Alucinação”; “Não leve flores”; “A palo seco”; “Fotografia 3X4”; “Antes do fim”, compunham o singelo disco, hoje catalogado como um clássico da discografia nacional.
“Eu não estou interessado/em nenhuma teoria/em nenhuma fantasia/nem em algo mais/nem em tinta pro meu rosto/ou, oba-oba, ou melodia/para acompanhar bocejos/sonhos matinais/eu não estou interessado/em nenhuma teoria/nem nessas coisas do Oriente/romances astrais/a minha alucinação é suportar o dia-a-dia/e o meu delírio/é a experiência com coisas reais/um preto, um pobre, um estudante/uma mulher sozinha/blues jeans e motocicletas/pessoas cinzas normais/garotas dentro da noite/revólver : cheira cachorro/os humilhados do parque/com os seus jornais/carneiros, mesa, trabalho/meu corpo que cai do oitavo andar/e a solidão das pessoas/dessas capitais/a violência da noite/o movimento do tráfego/um rapaz delicado e alegre/que canta e requebra/é demais!/cravos, espinhas no rosto/rock, hot dog/play it cool, baby/doze jovens coloridos/dois policiais/cumprindo o seu duro dever/e defendendo o seu amor/e nossa vida/mas eu não estou interessado/em nenhuma teoria/em nenhuma fantasia/nem no algo mais/longe o profeta do terror/que a laranja mecânica anuncia/amar e mudar as coisas /me interessa mais “/

“Alucinação” composição da autoria de Belchior.

O rapaz latino-americano se desnuda num mar de verdades cruas, cortantes, feito faca, talhadas por um jovem que veio do Norte e que caiu na cidade grande, em tempos ásperos, no medonho redemoinho do Movimento Militar de 64, pondo fim a um juvenil sonho libertário para a triste América do Sul, do sal e do sol.

A partir de então, Belchior, quase que anualmente lança trabalhos, catapultado pela voraz mídia, até desaguar no enigmático CD “Bahiuno” da Gravadora Movieplay no ano de 1993, onde emergem cantos, desencantos e utopias, próprios dos turbulentos Anos 60 e 70 do século passado.

“Já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte/leva notícias de mim/diz àqueles da província que já me viste a perigo/na cidade grande, enfim/conta aos amigos doutores/que abandonei a escola para cantar em cabaré/baiões, bárbaros, bahiunos/com a mesma dura ternura/que aprendi na estrada e com Che/ah! Metrópole violenta que extermina os miseráveis/negros párias, teus meninos/mais uma estação no inferno/Babilônia, Dante eterno! Há Minas?/outros destinos ?/conta àquela namorada/que vai ser sempre o meu céu/mesmo se eu virar estrela/e aquelas botas de couro combinam com o meu cabelo/já tão grande quanto o dela/e no que toca à família/dá-lhe um abraço apertado que a todos possa abarcar/fora-da-lei procurado me convém/família unida contra quem me rebelar/cai o Muro de Berlim – cai sobre ti/sobre mim, Nova Ordem Mundial/camisa-de-força-de-vênus.../ah! Quem compraria, ao menos, o velho gozo animal/já que o tempo fez-te a graça de visitares o Norte/leva notícias de mim/o cara caiu na vida vendo seu mundo tão certo/assim tão perto do fim/dá flores ao comandante que um dia/me dispensou do serviço militar/ah! Quem precisa de heróis:/feras que matam na guerra e choram na volta ao lar/gênios-do-mal tropicais/poderosos bestiais/vergonhas de Mãe Gentil/fosse eu um Chico, um Gil, um Caetano/ e cantaria, todo ufano: ‘Os Anais da Guerra Civil”/ao pastor da minha igreja/reza que esta ovelha negra/jamais vai ficar branquinha/- não vendi a alma ao diabo.../o diabo viu mal negócio nisso de comprar a minha/se meu pai, se minha mãe se perguntarem, sem jeito/- onde foi que a gente errou?/elogiando a loucura/e pondo-me entre sonhadores/diz que o show já começou/trogloditas, traficantes, neonazistas, farsantes :/barbárie, devastação/o rinoceronte é mais decente do que essa gente demente/do Ocidente tão cristão”/  Composição Bahiuno, de autoria de Belchior e Francisco Casaverde.

O neologismo Bahiuno diz respeito a baiano, como eram denominados os nordestinos/nortistas que migravam para o Sul Maravilha, em busca da sorte grande, e, Huno, tribo nômade, bárbara, comandada pelo rei Átila, nominado “Flagelo de Deus”, que invadiu o Império Romano no século IV. Cumpre salientar, que em sua magnanimidade e doçura, Belchior põe-se ao largo, sendo um antípoda do sanguinário rei Átila.

 Em Bahiuno, o menestrel cearense faz chegar aos seus amigos e familiares notícias de sua aventura/desventura na Cidade Grande, referindo-se, também aos “doutores”, seus diletos companheiros da Faculdade de Medicina da UFC, Turma de 1973, apartados do compositor, de chofre, pela mão do destino, em 1971 com sua partida rumo a São Paulo. A letra faz clara menção ao guerrilheiro argentino/cubano Ernesto Che Guevara (1928-1967), trucidado na Bolívia; e a Dante Alighieri (1265-1321), poeta/ político florentino de quem Belchior tencionava traduzir a magna “Divina Comédia”.

Aparecem em “Bahiuno” as figuras de Chico(Buarque), carioca com fortes laços familiares em Pernambuco; Gil (Gilberto) e Caetano(Veloso), estes baianos, todos ídolos da MPB, a quem o cearense Belchior trata com a devida reverência (fosse eu um Chico, um Gil, um Caetano...).

Caetano, Gil, Betânia e Gal fizeram parte dos Doces Bárbaros e do Movimento Tropicalista, que influenciaram toda uma geração da moderna MPB. Não tardou a surgir na época, numa província do Norte, o “Pessoal do Ceará”, onde despontaram figuras como Augusto Pontes, Cláudio Pereira, Belchior, Raimundo Fagner, Ednardo, Rodger Rogério, Tetty, Fausto Nilo, Antônio José Brandão, Ricardo Bezerra, Ieda Estergilda, Cirino, Sérgio Pinheiro, Delberg, Francisca Neponuceno, Petrúcio Maia, Jorge Mello e Amelinha, dentre outros.
Do mesmo modo que o álbum “Alucinação” de 1976, põe em evidência a monumental figura do poeta, cantor, pintor e intelectual Antônio Carlos Belchior, Bahiuno, de 1993, fecha com chave de ouro a rica trajetória do bardo cearense, na história de nosso cancioneiro. Daí até 2017, ano de sua partida rumo às nuvens do divino, pouco foi acrescentado ao rico acervo musical talhado a cinzel pelo magistral” rapaz latino-americano, vindo do interior e sem parentes importantes”, mas que cravou sua marca indelével na moderna Música Popular Brasileira.

Francisco Clayrton/Francisco Eleutério.
  


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