Chegada de Papai Noel em Fortaleza
Com uma nostalgia batendo forte no peito , e a saudade pedindo passagem , calcei meu fanabor branco , limpo com alvaiade , vesti minha calça faroeste , com uma supimpa camisa de gola alta . Caprichei na trunfa segura pela brilhantina Glostora .
Ligeiro parti para um cavaco maneiro na Praça do Ferreira , para me afogar naquele mar de luzes e de lembranças .
Arranjado num tosco banco , corri a vista estropiada caçando um agora inexistente Abrigo Central . Cadê o Pedão da Bananada ? Onde os anjinhos levitando nas sacadas do vetusto Excelsior Hotel ?
Dali parti para as lapinhas perdidas nos bairros afastados de Fortaleza , como no Cocorote , Alto da Balança , ou , Matadouro Modelo .
Perdi - me pelas prosaicas Rua da Palha , Rua da Cadeia , Rua de Cima , Rua do Pocinho , Rua das Almas , e , Rua Formosa .
Retornei , sozinho , cantando o amor febril, mas não triste , pelejando com a memória um poema que marcou minha doce infância, já tão distante , e que eu sabia de cor e salteado :
" Eu não gosto de você, Papai Noel !
Também não gosto desse seu papel
De vender ilusão à burguesia .
Se os garotos humildes da cidade
Soubessem de seu ódio a humanidade ,
Jogavam pedra nessa fantasia .
Talvez você não se recorde mais ,
Cresci depressa , me tornei rapaz ,
Sem esquecer , no entanto , o que passou .
Fiz - lhe um bilhete pedindo um presente
E a noite inteira eu esperei , contente .
Chegou o sol e você não chegou .
Dias depois , meu pobre pai , cansado ,
Trouxe um trenzinho velho , empoeirado ,
Que me entregou com certa apreensão .
Fechou os olhos e balbuciou :
" - É pra você , Papai Noel mandou " .
E se esquivou , contendo a emoção .
Alegre e inocente nesse caso ,
Eu pensei que meu bilhete com atraso ,
Chegara às suas mãos , no fim do mês .
Limpei o trem , dei corda ,
Ele partiu dando muitas voltas .
Meu pai me sorriu e me abraçou pela última vez .
O resto eu só pude compreender quando cresci
E comecei a ver todas as coisas com realidade .
Meu pai chegou um dia e disse , a seco :
" - Onde é que está aquele brinquedo ?
Eu vou trocar por um outro na cidade " .
Dei - lhe o trenzinho , quase a soluçar ,
E como quem não quer abandonar
Um mimo que nos deu , quem nos quer bem ,
Disse medroso : " - o senhor vai trocar ele ? "
Eu não quero outro brinquedo , eu quero aquele .
E por favor , não vá levar meu trem " .
Meu pai calou - se e pelo rosto veio
Descendo um pranto que , ainda creio
Tanto e tão santo , só Jesus chorou !
Bateu a porta com muito ruído ,
Mamãe gritou , ele não deu ouvidos ,
Você , Papai Noel me transformou num homem
Que a infância arruinou , sem pai e sem brinquedos .
Afinal, dos seus presentes não há um que sobre
Para a riqueza de um menino pobre ,
Que sonha o ano inteiro com o Natal !
Meu pobre pai doente , mal vestido ,
Para não me ver assim desiludido,
Foi longe para trazer - me um lenitivo ,
Roubando o trem do filho do patrão .
Pensei que viajara ,
No entanto depois de grande ,
Minha mãe , em prantos ,
Contou - me que fora preso ,
E como réu, ninguém a absolê - lo se atrevia .
Foi definhando , até que Deus , um dia ,
Entrou na sela e o libertou pro céu .
Porque você fez isso , Papai Noel ? "
" Monólogo do Natal " , de autoria do poeta , jornalista, cordelista, compositor e publicitário alagoano Aldemar Buarque de Paiva ( 1925 - 2014 ) .
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