sexta-feira, 8 de maio de 2020



Passagem da Noite
"É noite. Sinto que é noite/não porque a sombra descesse/(bem me importa a face negra)/mas porque dentro de mim,/no fundo de mim, o grito/se calou, fez - se desânimo. /Sinto que nós somos noite,/que palpitando no escuro/e em noite nos dissolvemos./Sinto que é noite no vento,/noite nas águas, na pedra./E que adianta uma lâmpada?/E que adianta uma voz?/É noite no meu amigo./É noite no submarino. /É noite na roça grande./É noite, não é morte, é noite/de sono espesso e sem praia./Não é dor , nem paz , é noite,/é perfeitamente a noite."
Uma longa e tenebrosa noite envolve todo o minúsculo bólido terrestre que navega no silêncio absoluto do multiverso.
Um minúsculo e traiçoeiro diabinho vindo do Norte abate vidas humanas, invadindo , indiferente, mansões e choupanas.
E o rei - sol em sua carruagem de ouro, quando irá recompor o cenário das bem- aventuranças ?
"Mas salve, olhar de alegria !/ E salve, dia que surge !/Os corpos saltam do sono,/ o mundo se recompõe. /Que gozo na bicicleta !/Existir , seja como for./ A fraterna entrega do pão. /Amar : mesmo nas canções. /De novo andar: as distâncias, /as cores, posse das ruas./Tudo que às noites perdemos/se nos confia outra vez./Obrigado, coisas fiéis!/Saber que ainda há florestas,/sinos, palavras; que a terra /persegue seu giro, e o tempo/não murchou; não nos diluimos!/ Chupar o gosto do dia !/Clara manhã, obrigado, / o essencial é viver"
"Passagem da Noite", poema de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), considerado o maior poeta da literatura brasileira do século XX.

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