Domingo de Cenho Fechado
"Nuvens...Hoje tenho consciência do céu, pois há dias em que o não olho mas sinto, vivendo na cidade e não na natureza que a inclui. Nuvens... São elas hoje a principal realidade, e preocupam -me como se o velar do céu fosse um dos grandes perigos do meu destino. Nuvens... Passam da barra para o Castelo, de ocidente para o oriente, num tumulto disperso e despido, branco às vezes, se vão esfarrapadas na vanguarda de não sei quê; meio - negro outras, se, mais lentas, tardam em ser varridas pelo vento audível; negras de um branco sujo, se, como quisessem ficar, enegrecem mais da vinda que da sombra o que as ruas abrem de falso espaço entre as linhas de fechadoras da casaria.
Nuvens... Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstrata e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também. Nuvens ... Que desassossego se sinto , que desconforto se penso, que inutilidade se quero ! Nuvens... Estão passando sempre, umas muito grandes, parecendo , porque as casas não deixam ver se são menos grandes que parecem, que vão à tomar todo o céu; outras de tamanho incerto, podendo ser duas juntas ou uma que se vai partir em duas, sem sentido no ar alto contra o céu fatigado; outras ainda, pequenas parecendo brinquedos de poderosas coisas, bolas irregulares de um jogo absurdo, só para um lado, num grande isolamento, frias.
Nuvens... Interrogo - me e desconheço - me. Nada tenho feito de útil nem farei de justificável . Tenho gasto a parte da vida que não perdi em interpretar confusamente coisa nenhuma, fazendo versos em prosa às sensações intransmissíveis com que torno meu o universo incógnito....
Nuvens ... São como eu, uma paisagem desfeita entre o céu e a terra , ao sabor de um impulso invisível, trovejando ou não trovejando, alegrando brancas ou escurecendo negras, ficções do intervalo e do descaminho, longe do ruído da Terra e sem ter o silêncio do céu. "
Excertos de " Nuvens " , de autoria do mago português, Fernando Pessoa (1888 - 1935 ).
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