domingo, 6 de outubro de 2019

Vossa Excelência - Saudades de Rubem Alves

" Havendo os deuses tornado conhecida a sua decisão através da voz do povo - "Vox populi , vox dei" - ,permito- me sugerir uma pequena contribuição para o saneamento de nossas práticas políticas. E vou fazê- lo baseando- me numa experiência que tive quando representante dos professores titulares no Conselho Diretor da Unicamp. Caipira, sem estar familiarizado com as etiquetas do mundo acadêmico, assombrou- me o uso que se fazia da palavra " magnífico ", magnífica palavra que eu emprego para me referir a um pôr- do- sol, à floresta amazônica, à Nona Sinfonia. No Conselho Diretor, entretanto, usava - se essa palavra magnífica para se referir ao reitor: "magnífico reitor " , " vossa magnificência " . O que me causava espanto era o fato de que ninguém julgava estranho que, pelo uso dessa palavra, se colocasse o reitor junto ao pôr- do- sol ,à floresta amazônica e à Nona Sinfonia. Aí puseram na minha cabeça que eu deveria me candidatar ao cargo de reitor. Por alguns dias brinquei com a ideia . Mas logo percebi que não daria certo. Mas durante meu período de insanidade escrevi a primeira portaria que eu baixaria: "No uso de meus poderes de reitor decreto que está vedado o uso de "magnífico" e "vossa magnificência " no tratamento ao reitor.
Minhas razões eram simples. Se um professor usasse a palavra "magnífico" em relação a mim, haveria somente duas possibilidades. Primeira possibilidade: o professor que assim o fizesse realmente acreditava na minha magnificência. O que seria prova cabal de sua debilidade mental. Deveria ser demitido. Segunda possibilidade: o professor estaria usando a dita palavra sem acreditar na minha magnificência. Nesse caso ele estaria usando por gozação, o que é inadmissível. Teria de ser demitido por atentado ao pudor acadêmico.
As palavras são perigosas. De tantas vezes repetidas acabarmos por acreditar nelas. Veja o caso do Congresso: os congressistas usam a expressão " Vossa Excelência " para se dirigirem uns aos outros. Um homem dirigiu - se a Jesus chamando- o de "bom ". Ele respondeu. "Por que me chamas bom ? Bom há um só, que é Deus". Pois nossos parlamentares não se contentam em serem tratados por " bom" nem por" muito bom " nem por " excelente ". Tem que ser " excelentíssimos"....
Dada a gravidade da posição que ocupam não se passa pela cabeça que qualquer um deles use essa por gozação. Eles têm de acreditar na sua própria excelência e na excelência dos outros.
Meditando sobre essa expressão compreendi a razão por que os deputados acusados de corrupção foram absolvidos por seus colegas. Se eu acredito que meu colega deputado é excelentíssimo e assim o trato, como poderei condená - lo por corrupção? Se eu o condenar estarei confessando que , ao usar a expressão " Vossa Excelência " , eu estaria mentindo. Um " excelentíssimo " jamais é corrupto.
Proponho, então, que por motivos de pudor e modéstia, os deputados e senadores sejam proibidos de usar a expressão " Vossa Excelência " ao se referir aos seus colegas. Deve bastar - lhes , como representante do povo, ser tratados como o povo é tratado. Sei que terei pelo menos um deputado que apoiará minha proposta: o Clodovil. Ele jamais aceitaria ser tratado por " Vossa Excelência ". Para ele o tratamento terá de ser " Vossa Belezura ".
Crônica " Vossa Excelência " , publicada na Folha de S. Paulo , em 31 de outubro de 2006 , da autoria de Rubem Alves ( 1933 - 2014 ) : psicanalista , educador , teólogo, escritor e pastor presbiteriana brasileiro. Quanta falta nos faz !

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