terça-feira, 19 de fevereiro de 2019


"Depois que Narciso morreu , contou Oscar Wilde, todas as flores à beira da água ficaram desoladas e pediram ao rio algumas gotas de água para chorar.
- Ah - disse o rio - , se todas as minhas gotas d'água fossem lágrimas, eu não as teria suficientemente para chorar a morte de Narciso. Porque eu o amava .
- Como não o amá - lo ? - disseram então as flores. - Ele era tão belo !
- Ele era belo? - perguntou o rio.
- E quem poderia saber melhor do que você? - disseram as flores. - A cada dia ele se debruçava por cima da margem e contemplava sua beleza nas suas águas.
- Mas não era por isso que eu o amava - disse o rio.
- E, então, por que ?
- Porque, quando ele se debruçava, eu podia ver a beleza das minhas águas nos olhos dele ."
O Amor do Rio , do livro Contos Filosóficos do Mundo Inteiro , da autoria de Jean - Claude Carriére.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019


"No dia brancamente nublado entristeço quase a medo
E ponho - me a meditar nos problemas que finjo ...
Se o homem fosse , como deveria ser,
Não um animal doente , mas o mais perfeito dos animais,
Animal direto e não indireto,
Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às coisas,
Outra e verdadeira.
Devia haver adquirido um sentido do conjunto;
Um sentido, como ver e ouvir , do total das coisas
E não, como temos, uma ideia do total das coisas.
E assim - veríamos - não teríamos noção de conjunto ou de total.
Porque o sentido de total ou de conjunto não seria de um total ou de um conjunto
Mas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes.
O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as coisas - eis o erro e a dúvida.
O que existe transcende para baixo o que julgamos que existe.
A Realidade é apenas real e não pensada.
O Universo não é uma ideia minha.
A minha ideia do Universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
Assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
Assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade.
Mas , como a essência do pensamento não é ser dita, mas ser pensada ,
Assim é a essência da realidade o existir , não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos.
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
O espelho reflete certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.
Essas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas, pensadas:
Mas no fundo o que está certo é elas negarem - se a si próprias
Na negação oposta de afirmarem qualquer coisa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim..."
Poema da autoria de Alberto Caeiro ( Fernando Pessoa) : 1888 - 1935.
Foto que ilustra o texto : Rio Pacoti encontrando o Atlântico Oceano no Porto das Dunas.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019




Na boca da noite o pintor celestial anunciando com cores de várias matizes o próximo repouso do Rei - sol. Ouço n'alma o badalar do sino da Igreja do Coração de Jesus chamando para a Ave Maria na minha já distante infância.
" Cai a tarde tristonha e serena
Em macio e suave langor
Despertando no meu coração 
A saudade do primeiro amor.
Um gemido se esvai lá no espaço 
Nesta hora de lenta agonia
Quando o sino saudoso murmura 
Badaladas da Ave Maria.
Sinos que tangem com mágoa dorida
Recordando os sonhos da aurora da vida
Trazem ao coração paz e harmonia 
Na prece da Ave Maria.
No alto do campanário 
Uma cruz simboliza o passado 
De um amor que já morreu
Deixando um coração amargurado "
Ave Maria , composição de Erotides de Campos ( 1896 - 1945 )

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019


Encontro do Rio Pacoti com o Atlântico Oceano, no Porto das Dunas, neste fim de tarde de sábado. A palavra deve vestir - se como uma deusa , e erguer - se como um pássaro:
"O Rio nasce
Toda a vida.
Dá - se 
Ao mar a alma vivida .
A água amadurecida,
A face
Ida.
O Rio sempre renasce
A morte é vida. "
Poema "Alongo- me " da autoria de Guimarães Rosa ( 1908 - 1967 )

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

O Comprimido
Para o boêmio Clayrton Weyne

Na Praça do Passeio Público, um imponente hospital filantrópico foi fundado no ano de 1861 com fins de prestar assistência a uma população estimada em cerca de 16 mil almas moradoras na capital cearense. Era a Santa Casa de Misericórdia de Fortaleza que ao longo dos anos tornou - se , com a inestimável ajuda de" Homens de Bem "que compõem sua Irmandade Beneficente , uma modelar instituição de assistência à saúde, ensino e pesquisa do Ceará.
Na década de 70 do século passado , no movimentado ambulatório de ginecologia daquele nosocômio , uma jovem de 18 anos busca atendimento médico para o que seria uma emergência. A queixa era de dor cortante ao urinar que surgira há 3 dias. A história clínica sumária pouca luz trazia para se firmar uma hipótese diagnóstica plausível.
O médico dispensou o exame ginecológico e solicitou alguns exames laboratoriais : hemograma completo , sumário de urina e glicemia .
Os resultados dos exames mostraram : hemograma dentro da normalidade , sumário de urina sem sinais de infecção e revelando , contudo , a maciça presença de glicose na amostra ; e a glicemia apontando para 350 mg/dl, valor bem acima da normalidade.
Conclusão diagnóstica: Diabetes Melito.
" - Quer dizer , doutor , que eu contrai esta tal de diabetes , pelo visto , mais uma doença do mundo ?"
" - O diabetes vem de dentro da gente , resultante de um excedente de açúcar no sangue e não se trata, obviamente ,de uma doença venérea, como um esquentamento ( gonorréia) , uma cristã de galo ( HPV ) , ou um cancro duro ( sífilis) , falou o esculápio".
" - Agora eu entendo , verberou a cliente - o meu companheiro , mulherengo incorrigível, conhecido no Morro do Ouro , aqui vizinho , como Bico - Doce , já me apresentou a todas essas mazelas citadas pelo senhor, exceto, está tal do sangue doce "
" Só faltava essa, pois cansei de tomar injeção de penicilina no ambulatório do enfermeiro Almeida , por conta das travessuras deste amante infeliz"
Desenhava - se ali o prelúdio para uma nova discussão no casebre dos dois , no vizinho Curral , um furdunço medonho que , quase sempre, findava na delegacia do bairro.
E assim seguia o calvário do pinguço Bico - Doce , cada vez mais calado e esquisito, bebendo todas , diariamente , e chegando grogue ao barraco , vendo alucinações de bichos subindo pelas paredes , noite adentro.
Em certa madrugada , na Emergência da Santa Casa de Misericórdia, chega um Bico - Doce estropiado , conduzido pela sua jovem companheira diabética, ele mostrando uma convulsão generalizada atrás da outra, pletórico e vertendo espuma pela boca. Ela o encontrara, há pouco, no chão do barraco , já desacordado, tendo ao lado uma caixa vazia de veneno para matar ratos.
Meia hora depois , Bico - Doce , principiava sua jornada para o além, encompridando o sono , numa fria mesa do necrotério, tendo ao lado uma solitária vela tremeluzindo e ao longe um galo anunciando um novo alvorecer.
" Deixou a marca dos dentes dela no braço/pra depois mostrar pro delegado/ se acaso ela for se queixar da surra que levou/por causa de um ciúme incontrolado/ele andava tristonho guardando um segredo/ chegava e saia , comer não comia e só bebia /cadê a paz/tanto que deu pra pensar/ que poderia haver outro amor/ na vida do nego pra desassossego/ e nada mais /seu delegado ouviu e dispensou/ninguém pode julgar coisas de amor/O povo ficou inteirado do acontecido/cada um dando sua opinião/ela acendeu muita vela/pediu proteção, o tempo passou/ e ninguém descobriu/ como foi que ele se transformou/ uma noite, noite de samba/noite comum de novela /ele chegou pedindo um copo d'água/pra tomar um comprimido/depois cambaleando foi pro quarto e se deitou/era tarde demais quando ela percebeu/que ele se envenenou/seu delegado ouviu e mandou anotar/sabendo que há coisas que pode julgar/só ficou intrigado quando ela falou/que ele tinha a mania de ouvir sem parar/um samba do Chico falando das coisas do dia a dia "
Letra da música " Comprimido " , composta pelo poeta e cantor Paulinho da Viola .
Rosa e JK

"Guimarães Rosa, desassombrado no sertão poético, cauteloso em prosa protocolar, foi contemporâneo de Juscelino na Escola de Medicina de BH. Presidente , JK pediu a seu auxiliar João Milton Prates que localizasse o escritor por telefone : ele próprio queria comunicar ao amigo sua promoção a ministro do Itamaraty. 
Rosa fez um apelo ao assessor: - um momentinho só: tenho de vestir o paletó para falar com o presidente ."
Excerto do livro Diário da Tarde , da autoria do mineiro Paulo Mendes Campos ( 1922 - 1991 ).
Como mudou em Pindorama, o respeito com as pessoas nos dias de hoje !
Minas Gerais ao longo dos séculos garimpou muitas pérolas da linhagem de Guimarães Rosa, JK , Paulo Mendes Campos , Fernando Sabino , Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Rubem Fonseca , Affonso Romano de Sant'anna, e Darcy Ribeiro, dentre outros.
Pindorama nos atribulados tempos atuais , mostra acúmulo de " rejeitos " com potencial risco para a saúde da nação como um todo.. O esgarçamento de partes da barragem da livre e salutar convivência põe em xeque a sobrevivência de Pindorama.
Não convém fazer rasos remendos na "barragem decrépita ", corroída nas últimas décadas, mas sim, reconstruir tudo aplicando novos saberes , caso contrário, o desastre será fatal.
Acorda Pindorama !


São Pedro abriu as torneiras , de vez , trazendo bênçãos ao meu querido Ceará:
" Perto de muita água, tudo é feliz "
" A água ... grita a qualquer pancada que lhe dão "
"Felicidade se acha é só em horinhas de descuido " ( Guimarães Rosa - 1908 - 1967 ).
 — em Sao Carlos - Centro de Diagnostico Por Imagem.